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Cidades

Tradição e Fé na Festa dos Kongos em Sento Sé

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Reportagem: Maiara dos Santos, Jornalista em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia.

Domingo de Páscoa. O relógio marcava 6h da manhã e já se ouvia o tilintar do sino da missa e estouro dos fogos. No município de Sento Sé, norte da Bahia, é dia dos devotos de Nossa Senhora do Rosário celebrar mais uma Festa dos Kongos, manifestação cultural existente há mais de 300 anos, como herança da cultura africana no país. Na cidade baiana, o batalhão formado por mais de 50 homens mantém a tradição dos Kongos, como eles denominam a festa. Formado por idosos, jovens, crianças, os devotos começam os ensaios em março, preparando-se para o festejo no sábado de Aleluia e a celebração final na Páscoa.

O agricultor Luiz e Seu Doga tocam a grade, chamada antigamente de caixa de guerra, dançam e trocam palavras com leve sorriso no rosto, cumprindo com respeito e alegria a tarefa de conduzir o cortejo pelas ruas da cidade. Aos 61 anos, Josimar de Jesus Fraga, mais conhecido como Seu Doga, sabe a responsabilidade e a luta em persistir com a tradição. “Dei meus primeiros passos nisso aqui ainda criança. Aprendi com meu pai, Sebastião, que aprendeu com meus avós. Enquanto vida e saúde Deus me conceder, vou estar por aqui junto com meus companheiros fazendo em forma de dança essa homenagem”.
O sino da igreja ainda tine e a fumaça dos fogos continua acinzentando o céu ensolarado da cidade. Com seu vestido rodado vermelho, Geovânia Carvalho, a rainha de 11 anos, aguarda na sua residência na Rua Bela Vista a chegada do cortejo. De longe se ouve o som da grade e das cantorias. É o batalhão que já se aproxima, cantarolando. “Rei e rainha, seu tenente e general, rei e rainha seu tenente general, Senhor me dê licença pra Rei de Kongo vadiar” . Feliz com a honraria de ser a rainha da festa, Geovânia conta que pedia a mãe Bethânia para colocar o seu nome na fila dos Reis dos Kongos. “Aguardei até que chegou a minha vez, agora vou passar o reinado para outra menina”.

Curiosos esperam a saída triunfal do rei e da rainha e se deparam com uma aquarela de cores. São homens negros e mestiços trajados com tecidos coloridos da altura do joelho à cabeça, saiotes rendados branco por cima das calças e camisa de tecido liso. Sobre a camisa, coletes coloridos, e na cabeça, chapéu ou coca feito com cartolina coberto com papel crepom colorido, fitas e grandes penas de aves, os símbolos e as cores são a reverência à matriz ancestral africana e aos índios nativos da região.

A mistura de cores nos trajes aponta indícios do hibridismo cultural e a tradição construída principalmente pelo povo negro trazido da África e os nativos indígenas que se uniram desde a época do Brasil colônia como forma de sobrevivência ao opressor.  A memória e vivências dos  antepassados surgem a todo o momento na festa através dos símbolos presentes nas vestimentas e das lembranças dos integrantes que relembram os familiares e as músicas .

O relógio já marca 9h30min do dia. Com passos de danças um tanto apressados e uma música mais ritmada para acompanhar as passadas, o batalhão segue pelas ruas da cidade a busca dos reis para celebrarem a Missa da Páscoa. Yasmim Marques e Higor Medrado de dez anos cumprem a promessa dos pais de seguir o reinado dos Kongos e aguardam em casa, na Rua Desembargador Osvaldo Nunes Sento Sé, a chegada do outro grupo do batalhão.

Seguidores e simpatizantes da festa esperam nas portas de casa e esquinas da cidade. Curiosos são atraídos pelo som estrondeante das vozes e da grade. Atualmente, o cortejo é seguido por ordem hierárquica, dos veteranos aos novatos.  Esse ano é Raimundinho que carrega a bandeira de Nossa Senhora do Rosário, símbolo maior da festa, lado a lado vem Luiz e seu Doga conduzindo o batalhão. São eles que puxam as músicas que embalam os dois dias do desfile e dão a direção ao evento.

Atrás deles vem Antônio Rocha, o Veinho, atual presidente dos Kongos, enfileirando o cortejo ao som dos cânticos: “Este nosso batalhão é formado por divisão, Alferes porta bandeira, general e capitão. Ô marcha, ô marcha, ô marcha, marcha rei do Kongo ô ê, marcha ô marcha vamos embora ô ê”.

Com passadas harmônicas, eles seguem cantando, dançando e brincando até a porta da casa dos reis. Cada música entoada no evento retrata um momento vivido na festa. No momento do encontro com a Corte de Reis, o batalhão reverência à Santa: “Oi que viva, oi que viva. Oi que viva, oi que vá. Nossa Rainha Nossa Senhora mandou chamar”. “Rei e Rainha seu tenente general, Rei e Rainha seu tenente general, senhor me dê licença pra Rei do Kongo vadiar”.

Ao observar os trechos das músicas, percebe-se que não são apenas os trajes que fazem referência às heranças do povo negro escravizado. Cada letra, remota os seus antepassados que, por décadas, serviram a coroa portuguesa como escravos.  “Eu não quero caçoada na porta do meu terreiro, não quero caçoada na porta do meu terreiro, vamos dar louvor a Sento Sé e Juazeiro”.  Esse último verso se refere a Juazeiro, quando era vila do município de Sento Sé no século XVIII.

José Luís

Ressurreição do Cristo

Enquanto isso na matriz da igreja Católica, localizada na praça principal da cidade, os fiéis iniciam a celebração da ressurreição do Cristo. Os Kongos se aproximam da praça. “Ô nossa senhora na igreja chegou, ô nossa senhora na igreja chegou, oi bam bam meu tirangolê, até para o ano cidade ditou ou bam bam meu tirangole”.

Padre Zezinho

Ainda na porta da igreja, recebe a benção do Padre José Severino Gomes que, entusiasmado, declara as boas vindas dos irmãos no santuário. Padre Zezinho, como gosta de ser chamado, afirma que, quando conheceu a história da cidade, ficou emocionando com a riqueza de detalhes do festejo. “É algo muito bonito, porque é uma coisa que corre na veia do povo. A gente percebe que eles fazem de coração, é bem emocionante a forma como eles celebram a vida, a ressurreição do cristo e a páscoa. O melhor de tudo é a gente poder se congratular e partilhar essas alegrias com eles”.

Celebrada com emoção, abraços, sorrisos e respeito mútuo entre os fiéis da religião católica com os Kongos, a missa traz uma atmosfera de tranquilidade. Nesse momento, a fé é um encontro das religiões de matriz africana, o candomblé e a católica, e evoca a  história do período colonial no Brasil. Quando foram trazidos para o Brasil como escravos, os primeiros africanos de origem iorubá não podiam cultuar suas divindades livremente, e começaram a associar suas divindades com os santos católicos para assim poderem expressar sua fé livre de represálias, como afirma a estudiosa Tania Maria Pinto de Santana, que escreveu o livro Imagem, Devoção e Escravidão.

Padre Zezinho costuma dizer que fé de um povo não diminui a do outro. Todos estão juntos para celebrar a vida e ressurreição do Cristo. Dona Raimunda crê nos deuses africanos, orixás, e sempre acompanha os Kongos. “É emocionante celebrar junto com eles a realização pela fé na nossa mãe Nossa Senhora do Rosário como também no seu filho Jesus Cristo”.

Durante a celebração, Padre Zezinho se referia ao sofrimento de Cristo e do sentimento de união. No olhar e nos gestos de alguns fiéis, percebia-se o sentimento de gratidão, fé e devoção. Veinho, o presidente do Kongos, considera a participação na Igreja uma das partes mais marcantes da festa, pois mostra o encontro entre as duas religiões. “Cada um tem a certeza que Jesus Cristo e Nossa Senhora se fazem presente no local e continuam nos abençoando e nos dando força para que estejamos juntos todos os anos”.

O relógio já está marcando meio dia, é hora de agradecer pela cordialidade recebida e partir para a Kasa dos Kongos. Na saída, um cântico para agradecer o momento de união entre os irmãos católicos: “Ô Deus vos salve a casa santa, ô Deus vos salve casa santa, aonde Deus fez a morada, ô Deus vos salve casa santa, onde Deus fez a morada, onde mora o cálix bente e a hóstia consagrada”. Ô vamos, vamos minha gente, ô vamos todos festejar, ô vamos, vamos minha gente, vamos todos festejar o Rosário de Maria”.

 

Novo Reinado

Entre um coro e uma reza, fiéis se congratulam em homenagem ao símbolo maior da festa e a coroação dos novos reis. “Amor, amor, a virgem meu amparo em cujas mãos por inteiro me entreguei, a vós, ó Mãe, de quem sou filho, caro meu coração fiel conservei”.
Enquanto a intercessão acontece dentro da Kasa dos Kongos, do lado de fora um batalhão com seus adornos multicoloridos se aproxima. “Alegre gente que vou levar Rainha velha pra entregar, alegre gente que vou levar rainha nova pra coroar”.

Já passam de 2 horas da tarde do domingo, a alegria do batalhão parece ser a mesma do primeiro dia de festa. “Não pode parar não. Esse movimento, batuque e alegria são como um combustível pra gente é nossa forma de render graças a nossa mãe santíssima e também de celebrar a vitória e união dessa festa”, exclama José Filho, com o corpo ainda em movimento no ritmo do som da grade.

Novo reinado: Yasmin Marques e Higor Medrado

Silenciam os instrumentos. Tudo pronto para a coroação dos novos reis e o cortejo é recebido logo na entrada da Kasa – a palavra casa escrito com “K” em referência aos Kongos. Assim que chegam, os reis tomam seus lugares ao lado de Nossa Senhora do Rosário e, ao redor deles, encontra-se um grupo de pessoas, em sua maioria mulheres que entoam cânticos e reza a Nossa Senhora do Rosário em agradecimento ao final de celebração da festa de 2019. “Divino Jesus, eu vos ofereço este terço (Rosário), que vou rezar, concedei-me pela intercessão de Maria, vossa mãe santíssima, a quem me dirijo, as graças necessárias para bem rezá-lo”.

Esse é o momento do oferecimento do terço e início das orações. Ao todo, os fieis rezam o rosário de 50 Ave Maria, precedida de orações e cânticos da terça parte do Rosário. “São orações e atos de amor que fazemos meditando nos principais mistérios de nossa fé. São as rosas que, por amor, oferecemos a mãe de Deus”, expressou Clarisse Souza, finalizando sua fala com o sinal da cruz.

O aroma da comida vai tomando conta do ambiente. Com amor e dedicação à festa, as mulheres estão na kasa desde 5h30min da manhã preparando o alimento para mais um dia de festejo. “É importante à celebração dessa festa todos os anos para que as novas gerações possam ver e sentir coisas que os nossos avós e bisavós sentiam”, diz Meire Lúcia Carvalho, uma das coordenadoras do festejo em Sento Sé.

A cerimônia prossegue com cânticos e rezas. Os devotos não param, enquanto umas iniciam, outros acompanham a troca de coroa. Ao fim da coroação, surge um grito de gratidão por mais um Rei de Kongo formado em Sento Sé “Viva a mãe de Deus do Rosário!”.

A festa não tem fim na coroação. Depois do almoço, eles retornam para as ruas da cidade apresentando os novos Reis dos Kongos do próximo ano. Com uma parada aqui, outra ali, ora na porta de alguém, ora pra tomar uma pinga, eles seguem o percurso dançando, cantando e reverenciando a bandeira. Com gestos de gratidão à Santa, eles finalizam mais um ano de devoção e festa.

Na década de 1970, a professora Antonila Cardoso percorreu vários municípios da região do Submédio São Francisco para investigar as tradições culturais que poderiam deixar de existir em decorrência da construção da barragem de Sobradinho. Ela fez  catalogação inédita das canções e dos rituais dos povos tradicionais na região. Na década de 1980,  Antonila registrou as manifestações no livro Nosso Vale….seu folclore a beira rio, ela conclamou a comunidade são franciscana a preservá-las: “Não deixem morrer o que resta da cultura popular folclórica no Sertão Vale do São Francisco”.

Em função da pandemia do Covid-19, hoje, 11 de Abril de 2020, Sábado de Aleluia, os integrantes não vão celebrar – pelas ruas da cidade – a devoção a Nossa Senhora do Rosário nem reverenciar os antepassados africanos, mas a fé continua em casa e no coração dos devotos. Salve, salve, Nossa Senhora, Nossa Rainha.

Reportagem: Maiara dos Santos, Jornalista em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia. Maiara pesquisou o festejo dos Kongos como bolsista de iniciação científica sob a coordenação da professora Edonilce Rocha Barros, e documentou a festa no ano de 2019, quando produziu uma revista especial, sob a supervisão da professora Andréa Cristiana Santos, como Trabalho de Conclusão de Curso. Email: [email protected]
Fotografia: Ilana Barbosa é jornalista em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia, e diretora do documentário Mulheres do Licuri (2019). E-mail: [email protected]

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